sábado, 5 de dezembro de 2020

Amor e morte – contra um Direito de Família póstumo, por Marcos Alves da Silva

 

Amor e morte – contra um Direito de Família póstumo

Amor E Morte

Contra Um Direito De Família Póstumo

 

Em memória de um grande e lendário amor

 

Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é mais forte que a morte”. (Cantares 8:6a)

 

Em uma padaria, tomando café, tratávamos sobre viagem de um dia a Alcobaça. A propósito, minha mulher lia para mim uma das versões da história de amor de Dom Pedro I de Portugal (não o do Brasil) por Dona Inês de Castro. Quando levantou os olhos, viu que eu estava chorando naquele local tão incomum para externar sentimos. As histórias que se convertem em lendas são sempre as melhores. De amor tão proibido, esta é emblemática.

A mais marcante história de amor de Portugal é, sem dúvida, a do proibido amor entre o infante Dom Pedro e Inês de Castro que era dama de companhia de sua mulher, Dona Constança Manuel. Pedro, sendo casado, tinha encontros românticos com Inês nos jardins da Quinta das Lágrimas. Com ela teve filhos, considerados bastardos. Constança, esposa do infante Dom Pedro, veio a falecer em 1345. Com seu falecimento, ele passou a viver com Inês. O caso de amor de Pedro e Inês, que já há muito era conhecido de todos, causava escândalo à Corte Portuguesa e contrariava os “castos costumes da época”.  Seu pai, o rei Dom Afonso IV, sentiu-se afrontado e condenou veementemente aquela união.

Resistindo à censura pública e à desaprovação paterna aquele amor sobreviveu. Pedro e Inês viveram alguns anos em Paços de Santa Clara, em Coimbra, com seus três filhos. Mas o clamor contra o amor proibido só aumentava entre cortesãos de modo que, em janeiro de

1355, Dom Afonso decidiu mandar assassinar Inês de Castro. Pedro enlouqueceu de dor pela perda da mulher de sua vida e liderou uma revolta contra seu pai. Nunca perdoou Dom Afonso pela morte de sua amada Inês. Diz a lenda que quando foi entronizado em 1357, Dom Pedro mandou prender e matar os assassinos de Inês, arrancando-lhes o coração.

Para, em alguma medida, simbolicamente resgatar o amor que havia perdido, Pedro jurou que se havia casado secretamente com Inês. Em outras palavras, revestiu de juridicidade a família à qual, até então, havia sido negada existência ou mesmo possibilidade de existência. Por tal declaração jurídica de reconhecimento do sagrado matrimônio, os filhos de Inês deixaram de ser considerados bastardos. Todavia, Dom Pedro fez muito mais.  Já como rei de Portugal, impôs o reconhecimento póstumo de Dona Inês de Castro como rainha de Portugal. Revestiu de dignidade aquela que foi, por força de lei e do preconceito, considerada indigna. E em derradeiro ato simbólico, imortalizou o amor proibido. Ordenou a trasladação do corpo de Inês de Coimbra para o Mosteiro Real de Alcobaça, em abril de 1360. Naquele Mosteiro, sempre visitado, estão os dois magníficos túmulos que Dom Pedro mandou construir, um para Inês e outro para si próprio. Foi a maneira que encontrou para dizer que o amor é mais forte que a morte. Para sempre estaria ao lado da sua eterna amada. Assim, a mais conhecida história de amor portuguesa foi imortalizada em duradouro mármore.

Agora, Inês é amada em Portugal e também o seria onde quer que fosse ouvida história-lenda semelhante. Mas este é um amor póstumo. Um amor que, à distância, romantiza a vileza e a crueldade dos preconceitos, das discriminações, das segregações. Um amor que sublima a realidade marcada por preconceitos e discriminações.

A história-lenda de Pedro e Inês instiga reflexão sobre as proibições legais ao amor. Ao se ouvir história de amor tão trágica, não há como não se ter em consideração que o interdito ao amor segue posto e a condenação à morte, ainda que simbólica, continua presente. Falar em bastardia, em casamento legítimo, em regra da monogamia como parâmetro para negar a existência de certas famílias, é, em última instância, reprisar o interdito de Dom Afonso IV, é reprisar a sentença de morte de muitas mulheres. Note-se que os efeitos e penas dos interditos ao amor recaem ordinariamente sobre as mulheres. Quem tinha “impedimento” para o relacionamento com Inês era Pedro. Mas, foi ela quem sofreu as consequências da realização do amor proibido. Cruel e friamente foi condenada à morte.

Duas teses aguardam julgamento com efeito de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. São os temas 526 e 529 vinculados respectivamente aos recursos extraordinários 883168 e 1045273, sendo o primeiro de relatoria do Ministro Luiz Fux e o segundo de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes. A questão central em ambos diz respeito à possibilidade de a união simultânea ao casamento produzir ou não efeitos jurídicos na esfera previdenciária para o(a) companheiro(a) sobrevivente. Num dos casos, a união é heterossexual e no outro a união é homossexual. Esta é a única diferença entre os casos discutidos em tese.

As uniões paralelas, em sua extensa maioria, são frutos não de exercício de liberdade, mas, sim, da dominação masculina. Em regra, são homens que constituem famílias paralelas ou simultâneas. O grave é que, em nome da monogamia, muitas mulheres que durante longos anos criaram filhos e estruturaram suas famílias por não se enquadrarem no standard sejam colocadas no campo da invisibilidade jurídica por força de concepções moralistas travestidas de juridicidade. Tais mulheres são dupla ou triplamente punidas. O estudo histórico do concubinato no Brasil merece maior atenção. A história do concubinato é a um só tempo a história da discriminação da mulher índia, negra e da socialmente desqualificada para o casamento.[1] Evidentemente, o instituto do concubinato com as fortes nuanças discriminatórias tem suas raízes fincadas em herança portuguesa e não teria como ser diferente.

O princípio da pluralidade das entidades familiares, consagrado no art. 226 da Constituição da República, ainda há de ter as reverberações hermenêuticas adequadas ao resgate de uma dívida histórica para com as mulheres. Todavia, neste campo, como no tempo de Inês e Pedro, ainda prevalecem os incrustrados e recalcados preconceitos. Reconhecidas as múltiplas formas de ser e de se fazer família, não há espaço no ordenamento jurídico vigente para as discriminações de outrora. O problema é que certos recalques e fetiches[2] se sobrepõem à racionalidade que deveria informar e reger a hermenêutica jurídica.

O simples reconhecimento da união estável como entidade familiar e a superação da visão monolítica centrada unicamente no matrimônio como forma de instituição de família trouxeram consigo implicações inarredáveis para essa área do Direito. Os câmbios são de grande magnitude, mas a mentalidade jurídica parece estar ainda arraigada ao modelo superado pela Constituição da República de 1988.

Apenas a título de exemplo, é possível cogitar sobre as consequências jurídicas da existência de duas uniões estáveis paralelas ou simultâneas. Nessa hipótese, não está em questão qualquer oposição entre casamento e união estável a ele paralela. O que se põe em debate é a indagação: estabelecida uma relação de conjugalidade, configurada como união estável, se um dos companheiros vier a estabelecer outra relação paralela àquela, poderia esta segunda ser reconhecida juridicamente, também, como união estável ou deveria ser colocada à margem da tutela jurídica e classificada como concubinato?

Não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer norma que estabeleça impedimento à configuração de união estável em razão de constituição de outra união estável pré-existente. O § 1º do art. 1.723 do Código Civil, fazendo remissão absolutamente indevida aos impedimentos do casamento, enumerados no art. 1.521 do mesmo Código, estabelece que sendo a pessoa casada e não estando separada judicialmente e nem de fato, eventual união que venha a estabelecer, paralela ao casamento, não configuraria união estável, mas, sim concubinato (art. 1.727 do CC). Neste caso, o impedimento é tão somente a existência do casamento.

Não há, portanto, norma expressa vedando uniões estáveis paralelas. A afirmação de que o reconhecimento de uma dada união estável impediria a admissão jurídica da existência de outra a ela paralela só se sustentaria se aplicada analogia com o casamento. A analogia, todavia, não parece plausível. O casamento é um negócio jurídico formal de natureza própria, com data certa de sua celebração. A união estável é um fato jurídico que o Direito colhe para lhe imputar determinados efeitos. A união estável não nasce de declarações de vontades expressas e reduzidas a termo em escritura pública, antes surge como um evento de dimensão social, sem data exata. Não existe casamento sem observação das formalidades legais. A união estável é coisa completamente diversa e informal. Negar a possibilidade de uniões estáveis paralelas ou simultâneas, em razão dos impedimentos próprios do casamento revela-se inaceitável, posto que não há em tal negação o mínimo de plausibilidade e lógica jurídica. 

Por isso, esse exemplo, das uniões estáveis simultâneas ou paralelas é apto a demonstrar que, estabelecido o princípio da pluralidade das entidades familiares no caput do art. 226 da Constituição da República, verdadeira cláusula de inclusão, o sistema anterior, monolítico, fundado exclusivamente no matrimônio, sofreu fratura tão profunda, que os resultados ainda continuarão reverberando por algum tempo, assegurando às pessoas que estavam à margem de qualquer proteção jurídica o reconhecimento de dignidade jurídica à família que constituíram nos duros embates da vida.

Não sendo a única forma de constituição de família, o matrimônio também perde sua centralidade e posição paradigmática. Como já consagrado em boa doutrina[3] não há hierarquia entre as diversas formas de constituição de família. Assim, não haveria razão para o esmaecimento da união estável quando confrontada sua coexistência com a de um casamento, como se ele fosse superior à união estável. Vê-se, pois, que a união estável promoveu uma ressignificação da conjugalidade.  

Por outro lado, as uniões poliafetivas constituem outro tipo de família, diversa das famílias formadas de uniões estáveis simultâneas. Nestas últimas, temos dois ou mais núcleos familiares distintos, dos quais uma pessoa participa simultaneamente. Nas chamadas uniões poliafetivas ou poliamorosas há apenas um núcleo familiar e uma só conjugalidade da qual participam mais de duas pessoas. De qualquer sorte, essas são apenas duas modalidades de um sem número de maneiras ou formas de ser família, hoje, as quais devem ser reconhecidas e respeitadas em um Estado que se pretende democrático, laico e plural.

Se nas famílias simultâneas a tutela jurídica de índole constitucional deveria voltar-se à proteção da vulnerabilidade, especialmente da mulher colocada na condição de “concubina”, nas relações conjugais denominadas de poliamor sobressai a tutela jurídica da liberdade. Diferentemente da maioria das famílias simultâneas, essa forma de conjugalidade, sim, resulta de um ato de liberdade. Famílias assim constituídas existem socialmente. Não é possível se cogitar da proibição de constituição de conjugalidade em trio ou mais pessoas. Isto é, ninguém pode ser criminalizado por estabelecer uma família desta forma ou de outra qualquer. Outro passo, todavia, é reconhecer eficácia jurídica a esse tipo de núcleo familiar.

O que se sucede é algo absolutamente semelhante às conjugalidades homoafetivas. Não existe diferença ontológica alguma. As famílias constituídas por casais homossexuais existiam. Eram, como seguem sendo, verdadeiras famílias. Faltava-lhes, todavia, a estampa ou o selo de reconhecimento jurídico. Houve alguma mudança na essência dessas famílias??? Claro que não. Mas ao se lhes negar reconhecimento jurídico, muitos direitos eram automaticamente subtraídos dessas pessoas em razão de um preconceito moralista, em razão de uma suposta moral social que dita regras jurídicas de exclusão.

Se dois homens e uma mulher estabelecem uma conjugalidade a três, que razões jurídicas podem ser evocadas para não se lhes reconhecer direitos, senão as mesmas razões que eram enumeradas para não reconhecer direitos aos casais homossexuais??? Se três mulheres decidem estabelecer entre elas uma relação familiar estável, fundada no amor, no respeito mútuo, no apoio recíproco, que razão jurídica pode ser evocada para não lhes reconhecer os direitos típicos da família???? Que importância existe quanto às suas decisões de natureza sexual??? O que o Estado tem a ver com tais decisões??? Que razões jurídicas podem ser evocadas para não se lhes reconhecer direitos pelo fato de serem três, senão as mesmas razões enumeradas para o não reconhecimento de direitos aos casais homossexuais até bem pouco tempo??? Que jurista estaria disposto a responder tais perguntas com honestidade intelectual?

Os casos paradigmáticos que estão postos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal não dizem respeito ao Direito Previdenciário, mas, sim, e antes de tudo, ao Direito das Famílias. Decidida a questão no âmbito familiar é que se reconhecerá ou não direito à pensão por morte às companheiras sobreviventes. Há, portanto, a possiblidade de se assistir o direito aplicado à uma realidade histórica de discriminação para a superação da invisibilidade jurídica de famílias que, de fato, existem e são socialmente reconhecidas como tais, ou se assistirá, mais uma vez, morrer Inês, em nome da moral e dos bons costumes, seja lá o que isso efetivamente signifique. Todavia, parece certo que o Direito é para ser atual, com incidência transformadora do mundo. Um direito póstumo é desprovido de proveito e eficácia.

No Brasil, repetimos com muita constância o dito português “Inês é morta” para fazer referência à inutilidade de qualquer tentativa de reversão de uma dada situação. “Inês é morta” é uma alusão àquilo para o que não há mais jeito nem remédio. Substitui com força expressiva o “não adianta mais nada”.  Ao tomar a história de Pedro e Inês como mote, a pergunta que se quer fazer por meio desta breve reflexão pode ser assim enunciada: Seguiremos inexoravelmente por essa senda impregnada de razões preconceituosas e discriminatórias para definir e limitar o que é e o que pode ou não ser família? Continuarão as mulheres inevitavelmente discriminadas por desqualificações sociais revestidas de certa aura de juridicidade e colocadas no campo da invisibilidade jurídica? Inês será mesmo morta?

 

Marcos Alves da Silva*

Lisboa, 17/09/2019

 


[1] Ver: SILVA, Marcos Alves da. Da monogamia: sua superação como princípio estruturante do direito de família. Curitiba: Juruá, 2013.

[2] Sobre o tema, em recente artigo, Rodrigo da Cunha Pereira escreveu: “Se fetiche traz o sentido de objeto ou pessoa a que se venera e se obedece às cegas, como um enfeitiçamento, é necessário tirar a regra jurídica (lei) desse lugar mágico e a que todos devem subserviência às cegas, como se ela tivesse o poder absoluto de tudo determinar.”  (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O perverso fetichismo da lei e suas consequências no direito familiar. In: Consultor Jurídico - CONJUR https://www.conjur.com.br/2019-set-08/processo-familiar-perverso-fetichismo-lei-consequencias-direito-familiar - consulta em 17.09.2019)

[3] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus claususRevista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese,  nº 12, p. 40-55,  jan./mar. 2002. p. 43.

* Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Civil no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e integrante do quadro de professores do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado). Professor da Fundação Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR). Vice-Presidente da Comissão Nacional de Ensino Jurídico de Família do IBDFAM. Advogado em Curitiba - PR.

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